quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A SOMBRA DA MEIA-NOITE


À mercê da luz cálida da meia-noite que se acotovela por entre a fresta mínima da janela do andar de cima do castelo mais sombrio a tantas milhas, onde os nervos se aquecem no frio repentino da estação gélida, crua e nua que desfalece e deixa desprovida de folhas e brotos, fazendo permanecer apenas os gravetos finos e enregelados da noite gótica que atravessa os ventos e as névoas fantasmagóricas que reluzem à simples formas de escuridão, eu, solicito as sombras, permaneço na minha insônia sem futuro, tentando construir pensamentos e alinhá-los nitidamente como numa estrada de poeira solta num dia de clima quente como inferno.

A sala onde jaz meu corpo no ócio se reflete ao meu estado de espírito — descansa numa paz sombria, onde a luz cálida de um candelabro rasga a escuridão para desmascarar minha face. Sobre minha alma perdura um teto antigo, onde já escutei em vezes muitas passos amaldiçoados de seres provindos de outros planos de existência. No meu lado esquerdo tem a sagrada lareira de pedra, fortificada com os séculos. O fogo que lá arde preguiçosamente já ardeu com mais astúcia. Os retratos dos meus anos postos sobre a cômoda ao lado me lembram muitas primaveras, até mesmo as moças que um dia eu na cama consolei. Ainda beliscando os arredores da sala com os olhos, chego próximo a uma poltrona. A bela poltrona que um dia ganhei no júbilo de minha maturidade — Ei! Espere! Tive que olhar para fora, pois percebo que o mau se aproxima. Nuvens negras me dão sinal de uma noite de trevas, e pelo vidro da janela observo o vento inclinar árvores, rasgar plantações e levantar objetos em redemoinhos. A chuva chegou, claro que acompanhada de fortes e bravos clarões, raios corajosos que riscam o céu sobre o meu castelo. Mas, voltando cá a ler a sala onde me encontro, percebo que um mundo de solidão me engole e que um seleto número de clarões penetra na sala como se fossem intrusos sinistros.

— Seja bem-vinda! Oh noite que me faz amar! — digo antes do desassossego.

Então eu começo a andar, mas quando ouço os trovões e o respigar das gotas da chuva no vidro da janela, tento me acalmar de uma tensão que tenta me sugar. Passo a mão sobre a barba, aliso os cabelos grisalhos, e enfim, olho em direção a porta. A figura está lá, estampada como um troféu. Parece um cavaleiro das trevas, um senhor das almas, um corvo, um gato, um demônio. Agora ele vem em minha direção e eu, cônscio de que minha respiração começa a aumentar, percebo minhas pernas fora do compasso, mas permaneço imóvel. Sua mão é imensa, talvez duas da minha, mas antes de qualquer coisa, seus dedos roçam minha testa. Caricia, singeleza, tudo num só momento. Ele parece ser de outro mundo, não sei. Quem sabe seja a morte, quem sabe seja a solidão ou alguém vindo das sombras.

A minha insônia já se foi, e agora meus olhos se arregalam, eufóricos, demoníacos. Com cuidado, vou deitando lentamente, e vendo o sorriso amargo e sarcástico brotar da boca daquela figura a minha frente. A tumba do inferno me aguarda e os sete braços de serpente virão me abraçar a qualquer momento, como um doce visitante num dia de festa. Mas de fato é um visitante. Um visitante vindo das sombras, macabro, enervado em horror. Um visitante à meia-noite.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

MISTERIOSA ATRAÇÃO


Sempre me perguntei o que realmente se escondia por trás do olhar felino de Damiana. Um olhar ousado, gentil, atraente e ao mesmo tempo perturbador. A maneira como ela me fitava, seu sorriso, seus gestos, tudo nela me fazia acreditar que ela era a perfeição em pessoa. A primeira conversa que traçamos foi numa noite fria e mergulhada em névoa. Como em todas as ruas da cidade, eu vinha caminhando atento, quieto e apenas sentindo o coração gritar na região das têmporas, quando senti um arrepio me acariciar a alma, e um medo avulso me invadir. Olhei ligeiramente para trás e vi apenas a rua deserta, cheia de sombras e penumbra. Mas quando passei por um beco escuro, senti que uma figura se projetava as minhas costas. Espantei-me, mas por sorte, era ela.

Aproveitando-me desse momento, convidei-a para sair, e no outro dia nos encontramos num café que descansava no térreo de um edifício sombrio e antigo. O estabelecimento era pequeno e com pobres detalhes de lucidez. Enquanto lia o cardápio, não percebi Damiana entrar e só notei sua presença quando dirigiu a palavra a mim.

― Veio cedo...

― Não costumo me atrasar ― sorri e beijei-a. ― Você está linda.

Nessa noite conversamos e bebemos aos montes, até que em certo momento, como num impulso, ou valendo-se de minha artimanha masculina, convidei-a para brindar a noite e ir até o meu apartamento. Ela aceitou, e quando chegamos, Damiana admirou-se ao contemplar os contornos dos móveis e dos cômodos.

— Você tem bom gosto — disse ela, passeando os olhos para todos os lados.

Não agüentamos por muito tempo. A despi com paciência, e assim que ela obedeceu ao mesmo procedimento, seu corpo nu roçou meus lábios e, antes de cairmos num sono profundo, entregamos-nos um ao outro como a doçura de um hálito de prazer.

Ao acordar, percebi que o alvorecer se apresentava quando uma tira de luz do sol veio acariciar minha face. Abri os olhos e tateei a cama ao meu lado. Damiana não estava lá. Levantei ligeiro e não notei sua presença dentro do apartamento. De roupão, andei pelo corredor e, sobre uma cômoda, observei um pedaço de papel em cima de uma folha de jornal velho. Tomei o papel em mãos e li aquelas malditas palavras:

“Espero que tenha gostado desta noite assim como eu, e desejo que não permita que seu coração se apegue assim, pois eu não pertenço a você, nem a ninguém.”

Sem entender, peguei a folha de jornal e li uma reportagem que me fisgou, corroendo-me de susto. Não acreditei. A matéria dizia que uma jovem havia sido vitima fatal de um acidente de carro, e que o fato, como explicitava a data do jornal, era de quase dez anos atrás. Atônito, quase cai de costas quando vi o retrato de Damiana ali exposto. Ela estava morta há quase uma década! Mas então quem era aquela garota? Com quem eu realmente eu havia estado na noite anterior? Larguei rapidamente aquela folha amarelecida, e após me aprumar, desci as escadas em busca de fôlego e de respostas.