sábado, 19 de junho de 2010

TORTURADO


Os punhos e os tornozelos foram amarrados com arame farpado. À medida que foi sendo apertado contra a carne, o arame foi rasgando a pele e súbito o sangue começou a escorrer. Natan gritou de dor assim que Billy ergueu seus braços e esticou as pernas. A dor latejou em sua alma. Natan estava suspenso, preso apenas pelo arame que rasgava seus punhos.


— Por que você está fazendo isso? — perguntou, com lágrimas nos olhos.


— Foi você quem pediu Natan. A culpa é toda sua.


— Não! — gritava Natan. — Por que?


Billy sorriu.


O local era o porão da própria casa de Natan. Ao surpreendê-lo no sofá assim que invadiu a casa, Billy sabia que estava infringindo uma lei. Porém, sabia que estava querendo cortar o mau pela raiz. O confronto entre eles foi suficiente para Natan perceber que tinha entrado num mato sem cachorro, e que a sua pretensão o tinha levado a isso.


— Não mandei você mexer com a minha mulher... — começou Billy, olhando para os punhos e para os tornozelos quase em carne viva que derramavam sangue. — Saiba Natan, eu andei observando muitas vezes você atrás dela. Foi um erro que você cometeu...


— Mas eu não tive nada com ela.


— Não venha me dizer isso, seu merda! Agora você pagará por isso...


Os olhos de Natan esbugalharam e o suor começou a sair por todos os poros do seu corpo. O sangue dos punhos escorreu pelo braço até chegar aos ombros. Billy o observava. Observava sua angustia sem uma ponta de dó.


— Me deixe em paz! — gritou.


— Não Natan. Saiba que sempre gostei de destruir coisas, e adorava arrancar os braços e as cabeças das bonecas da minha irmã — Billy soltou uma doce gargalhada.


O olhar de Natan petrificou.


— Se eu pudesse lhe dar um conselho que você realmente ocuparia, seria nunca mexa com a mulher dos outros, senão você vai acabar se dando muito mal. É uma pena que você realmente acabou mexendo. E justamente com a minha ainda! — sentenciou.


— Já disse que não...


Billy carregou o punho e desferiu um soco na boca do estomago de Natan.


— Cale a boca. Está na hora de acabar com você de uma vez.


Ao virar as costas, Natan sentiu o sangue gelar. Billy sumiu na escuridão. O porão velho e úmido abrigava dois homens. Somente um deveria sair vivo. E minutos depois Natan, que tentava de todas as formas escapar dos arames que o amarravam e que cada vez mais destruíam a sua pele, ouviu um barulho que jamais desejou ouvir – não àquela hora. Uma serra elétrica havia sido ligada. O que Billy estaria tramando? O que seria aquilo?


Vindo da escuridão, ele ficou de frente para Natan. Seu olhar inchado de medo fitou aquela serra berrando a sua frente como se fosse um animal louco por sangue.


— Não! Não faça isso Billy. Não faça...ahh!


Billy sorriu antes de atorar uma das pernas de Natan. Ele gritou de dor. Depois, no embalo do ritmo, cortou fora a outra perna. O sangue descia como se fosse uma torneira. Em seguida, louco e cônscio daquilo, Billy atorou um dos braços e viu, com o peso do corpo, Natan cair no chão. Mas, não se sentindo satisfeito, partiu o corpo de Natan em dois, como se fosse um pedaço de carne qualquer. Era muito sangue!


Billy largou a serra, cuspiu no que restara de Natam e subiu a escada em direção a rua.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O RELATO DE UMA MALDIÇÃO


Meu Deus! Cada vez que lembro daquela casa sinto os meus nervos se atrofiarem de medo. É sério! O medo que se apodera de mim quando me recordo daqueles tempos de infortúnio e trevas, causa-me certos transtornos mentais que ainda nos tempos atuais, mesmo que eu tente saber, jamais encontrarei explicação. Sei que muitos agora hão de duvidar de minhas palavras... aliás, nem peço que as absorvam como verdade, apenas quero que saibam que isto realmente aconteceu comigo e, antes que eu comece a relatar os fatos abaixo, peço-lhes apenas uma coisa: não queiram saber o que aconteceu, e expulsem essa história de seus pensamentos, pois não gostaria de saber que o que aconteceu comigo venha a acontecer com mais alguém.


A casa em questão situa-se em um pequeno vilarejo habitado por pouquíssimas famílias. Era a mais bela das mansões e, ainda, a que mais externava medo. A possibilidade de instalar-me ali e obter sossego e paz foi o que me despertou atenção e ânsia em comprá-la.


Sem preâmbulos, começarei a relatar os diabólicos fatos que me arrancam o sossego até os dias de hoje. Naquela noite a casa jazia em silêncio, e no quarto maior onde me instalei, um barulho estranho me atrapalhava o sono. Percebi que as paredes, assim que abri os olhos, estavam todas sujas de sangue e unhas invisíveis iam riscando a porta e o teto, causando-me arrepios nos dentes. Fechei os olhos. Tentei dormir. Era assustador! Na noite seguinte, enquanto pernoitava, outra coisa se apoderou daquele quarto. O sangue subitamente começou a escorrer pelas paredes como veias abertas. Tentei ignorar aquela visão e rapidamente me cobri de medo. Em outra noite ouvi gemidos e passos no quarto. Pensei estar delirando, mas, de súbito senti algo puxar minha perna. Deslizei pela cama como se alguma coisa estivesse realmente ali. Tentei me agarrar na cabeceira, mas não resisti. Gritei em busca de socorro. Mas quando caí de costas no chão percebi que não havia nada ali. Coloquei a mão na perna e senti algo. Liguei a luz e vi que ela estava lavada de sangue. Assustei-me e sai do quarto. Aturdido, desmaiei no corredor.


Não agüentando mais, comecei a pensar na possibilidade de escafeder-me daquela maldita casa. Porém, alguma coisa não queria me deixar ir embora. Enquanto eu lavava a louça na pia certa noite, senti uma par de mãos me tocar as costas. Virei-me. Nada vi. Minutos depois, aquele mesmo par de mãos fez mergulhar minha cabeça na água dentro da pia. Comecei a me afogar e a me debater como um louco. Pensei que o demônio estivesse naquela casa. Mais tarde, enquanto deleitava-me no banho, outra coisa aconteceu. A água do chuveiro que eu saboreava, mudou-se da água para o vinho, ou melhor, da água para o... sangue! Sim, sangue! Trêmulo, saí do banheiro ainda com o corpo lambuzado. Fui até a cozinha, e lá chegando encontrei todas as gavetas e portinholas dos armários abertas. Respirei deficientemente e, antes de tentar fazer algo, corri até a porta que me levava para a rua. Porém, antes de chegar até ela, senti meu cabelo sendo puxado. Gritei de dor. Fui jogado no chão, e de repente algo fez a minha visão escurecer.


Dois dias depois eu estava decidido em ir embora daquele inferno. Preparei minhas malas e tentei partir. Enquanto eu atravessava a sala, olhei para o espelho e foi ai que vi um vulto negro no reflexo. Parei. Sentindo o sangue borbulhar e o frio comer-me as entranhas, corri para a porta, mas ela se fechou sozinha. Fiquei sem ação. Abri uma janela na sala e joguei as minhas coisas para fora, depois coloquei as mãos sobre o patamar e ia pular quando, de repente, ela fechou rapidamente sobre minhas mãos. O sangue jorrou dos meus dedos. Sem pensar, quebrei os vidros com a cabeça e, extraindo as mãos ensangüentadas que estavam presas, consegui pular.


Sai correndo estrada afora para nunca mais voltar.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

DE GELAR O SANGUE


Enquanto a dança da noite horrenda avassala meus medíocres pensamentos, uma enchente de desprezo me corrói. Está na hora de partir. Eis que a vontade máxima de arrancar-me a vida me vem. Mas logo se vai, assim como a ventania que lá fora se enerva.


Agora, enquanto passo sob o umbral da porta, sinto o clima gótico que a mim se assalta. Tudo, exatamente tudo é belo. Tão belo quanto a morte do amor. Meus olhos cansados e desprezados sentem a imensa vontade de chorar. Meus nervos se contraem e os ossos de meu corpo começam a tremer. Seria medo? Seria uma ânsia de algo que a muito me persegue? O meu sangue gela. Sim, meu sangue gela! É estranho como o meu cabelo, assim como as arvores, dança ao vento. Eu sorrio e começo a caminhar.


Vou atravessando florestas sem fim e sem pena, montes arruinados e lagos negros como um poço. Aos poucos o suor começa a me sair pelos poros, mas é quando começo a limpá-lo que percebo que suo sangue. Sangue gelado começa a sair de mim em forma de suor. Começo a ficar todo molhado. Há sangue em todo o meu corpo, em toda a parte. A noite densa me vigia, e os raios sorridentes de escárnio se vangloriam dos meus pecados e fracassos. Olho para cima. Corvos me rodeiam querendo minha carne e eu continuo caminhando, lembrando do semblante perdido daquela que me fez desmanchar o coração e rasgar meu peito de dor e ódio. Lembro dos seus cabelos negros como se fossem serpentes e dos seus olhos azuis como oceano. Uma saudade me bate e, conseqüentemente, uma sensação de terror e desprezo também.


Começo a chorar. Lágrimas negras descem dos meus olhos. Sinto dor. Muita dor. Ai percebo que meu rosto vai se desfigurando, se rasgando como plástico, pois o liquido negro que desce de minhas órbitas é acido, e queima-me a pele. Sinto muita dor. Coloco a mão no rosto e sinto os ossos da face aparecendo. Eu estou morrendo aos poucos. Morrendo aos poucos!


Sinto medo.


Os raios resvalam por sobre as copas das arvores e iluminam o meu semblante. A cada passo que eu começo a dar, uma parte do meu corpo começa a despencar e rolar no chão. É estranho. Eu estou me indo! Primeiro perco os dedos da mão, depois os braços. Depois, conforme vou chegando ao córrego, percebo que somente as pernas me sustentam. Já não possuo menbros, não possuo boca, nariz, nada.


Olho para trás. Os demônios com suas trombetas infernais vem em minha direção. Só existe uma maneira de morrer em paz, e eu sei qual é. Deus que me perdoe pelos meus pecados, mas do sangue eu vim e do sangue morrerei. Mergulho no córrego e sinto, além de medo, frio. O sangue é gelado. Tudo é gelado. Não sinto meus ossos, não sinto meus membros, não sinto nada.


Sem braços, começo a afundar, deixando lá fora um mundo de trevas, sombrio como a hora da besta. Deixo lá fora um mundo que me ignorou e que me quis ver arder no inferno. Lá fora fica a floresta do mau, o céu negro, os raios loucos, as pessoas que sorriem de escárnio e ela, a minha maldita amada, pernoitando em algum lugar.


Vou afundando lentamente, nessa morte de gelar o sangue e de morrer a alma. Tudo é vermelho diante de mim. Lentamente fecho os olhos e começo a descer numa profundidade infinita, onde ninguém me acompanha, ninguém exceto o sangue que agora me carrega para o seio da terra perdida.



segunda-feira, 26 de abril de 2010

A ÚLTIMA CARTA DE AMOR


Meu amor,


Que Deus não permita que eu faleça de remorso, quem sabe, que ele permita até que também eu não perca a vida por não ter podido amar como sempre sonhei amá-la. Claro, de fato o mundo me retirou a maravilha de tê-la em mim, para mim como noutros tempos quis, mas cá eu juro que me firo ao culpar-me de desgosto, de perdido tê-la, não sei até quando, quiçá para sempre, coisa que horrível pra mim seria, como se o sol de desprovesse do dia.


O meu amor não é um amor louco, nem muito menos louco um dia foi, é porventura um amor solto e livre como tudo o que é belo, como tudo o que vai e volta. Lamento se não soube satisfazer todos os seus desejos, mas que Deus não permita que eu faleça sem antes contar ao mundo o seu mais suave segredo. A vez primeira que você vi, confesso que foi de arrepiar — eram os olhos claros como o céu sem nuvens, boca úmida e arroxeada, linda e leve como uma pluma, a face desenhada pela mão de Deus e o corpo que me fez perder os olhos nas curvas sinuosas. Lembro da voz doce e afável, sorriso largo e sensual, tudo como sempre sonhei, mas que nunca imaginei que realmente encontraria.


Mas o tempo passou — como passa rápido hein!


Foi como uma flecha voando em direção ao alvo. Nos perdemos nos trilhos da vida e um dia, nosso contato cessou, a dor se aprumou, e, deveras, meu coração de saudade de assaltou. Choro lágrimas de sangue nas noites frias e escuras, lembrando que poderia ter sido um pouco melhor, ou quem sabe até, ter sido eu mesmo, um eu que nunca fui. O dia não nasce mais tão belo como diante do prazer de vê-la sorrir um dia nasceu. As noites são mais longas e as madrugadas perturbadoras. Aquele dia que tudo encerrou, a morte, o desespero, o golpe... Desculpe-me, sei que errei e que minhas sinceras desculpas ou gratidões jamais consertarão aquele estrago. Mas confesso que em você pensei por tempos a fio e que apenas não segui o que o meu coração mandava para não magoá-la.


O destino foi cruel comigo meu amor, foi tão demoníaco que me amaldiçôo diuturnamente por tê-la conhecido e tê-la perdido assim, tão de súbito quanto um beijo que nunca proferimos. As rosas não têm mais o perfume que um dia tiveram e o vento não sopra mais suavemente como um dia soprou. Para mim, tudo virou cinzas e a penumbra da vida virou eternamente a minha companheira secreta e silenciosa. Os dias passam por passar, e eu amo apenas por ver no alheio o prazer de se amar outrem. A maldição da vida me acompanha e o sonho perpétuo me fere a alma. Você é tão linda que de quebranto lhe encho, elevando o encanto que jamais mereço.


Agora, mais que chorar a perda desgraçada do nosso amor irreal, é lembrar que um dia, quando na tumba da morte sem fim deixar cair-me de pranto, levarei seu sorriso e a lembrança do seu olhar, para que quando noutro mundo eu estar, poder enfim, em paz ficar. Agora, com a licença divina e limpando o tanto de lagrimas que rasgam a minha face, acabo de escrever está ultima carta de amor dizendo que muito a amo, talvez mais do que eu mesmo, talvez mais do que a vida. Mais, bem mais do que qualquer outro que um dia, porventura você amou. Espero em uma época ainda encontrá-la, antes que a morte não nos permita essa glória.


De quem um dia viveu para lhe amar.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

OUVINDO O MEDO


Escuro. Tudo estava escuro. A luz havia acabado, e lá fora se ouvia apenas o sussurrar do vento que lambia as venezianas com ternura, aflorando um medo que começava a se apresentar. Tobias e sua mãe estavam jantando e, subitamente, a luz se ausentou.

— Mãe, onde você está? Eu to com medo... — disse ele.

— Calma, filho, a mãe está aqui. Fique quietinho que eu vou catar uma vela.

Tentando acostumar-se com a escuridão, Tobias permaneceu sentado. Os minutos que passavam pareciam ser eternos. Não via nenhum palmo a sua frente e aquela sensação de medo lhe fazia perder a respiração. Sentiu o seu pobre coraçãozinho arder ao ouvir um forte ruído e sentiu vontade de chamar por sua mãe. Ele não sabia, mas havia alguém sentado ao seu lado.

— Mãe, cadê você?

Não ouve resposta.

— Manhê! — gritou. — Eu to com medo...

— Calma, filho, a mãe está aqui. Fique calmo.

Mary estava de costas e trazia em um pequeno prato um toquinho de vela que alimentava toda a cozinha. Uma luz amarelada iluminava uma parcela daquela penumbra que trazia tensão aos olhos e ao coração do menino. Sua mãe se virou. Tobias teve a impressão de que morreria.

Aquilo atrás dela realmente existia. Era sinistro e nojento. Era aterrorizante.

— Mãe... Não olha... Tem alguma coisa atrás de você. Não olha mãe... Não olha!

— Pare de me assustar, Tobias. Você sabe que eu não gosto disso.

Ao se virar, Mary visualizou aquilo as suas costas. Ligeiramente aquele ser de outro mundo cravou suas garras nos braços da mulher e, com agilidade, fez sair uma enorme mandíbula de dentro de sua boca. Tobias via a tudo boquiaberto. Não sabia o que fazer e nem como proceder. Aquela coisa tinha a cabeça em formato oval, com três grandes olhos na face. Era grande, munida de garras, músculos e dentes afiados. Tobias não parava de tremer ao ver aquela coisa que ele nunca imaginou que realmente pudesse existir. Gosmas escorriam da boca e das mãos daquele monstro horrendo.

De repente o prato com a vela caiu, e novamente a escuridão tomou conta daquele lugar e dos olhos de Tobias, que agora não via mais nada, apenas ouvia. Ouvia que sua mãe gritava sem parar, ouvia o quebrar dos ossos das suas costas e um certo volume de liquido que se esparramava no chão. Tobias estava em pé, mergulhado naquela penumbra amarga que lhe trazia dor, medo e uma morte que jamais chegou a ver, apenas a ouvir. Começou a chorar silenciosamente ao perceber que os ruídos e gritos haviam se perdido na escuridão.

— Mãe? — tentou chamar por ela, mas ele sabia que não adiantava mais nada.

Havia uma coisa ali. E foi quando sentiu um par de mãos grandes em seus ombros que percebeu que ainda tinha companhia. Ficou inerte, e antes de poder fazer mais alguma coisa, aquela criatura penetrou algo em sua boca, algo grosso e raivosamente gosmento, que começou a rasgar a boca do menino, entrando amargamente em suas entranhas e tomando conta do seu corpo. Tobias calou-se para sempre assim que aquela coisa, além de entrar dentro dele, ainda torceu seus braços de forma inversa, sem pena nem dó.

quarta-feira, 31 de março de 2010

O MANUSCRITO DA SAUDADE


Ainda hoje sinto saudade de Isabella — a minha eterna doce amada. Sempre contemplei seu riso, seus olhos e seus cabelos quase doirados. Quando me recordo dos nossos dias vejo que sempre tive o que desejei, e que, de fato, fomos feitos um para o outro. Isabella era escritora, e existe um texto feito por ela que não consigo ler sem chorar. É Um texto sobre saudade, coisa que muito me lembra ela.

Era noite, e a sua lembrança estava me golpeando. Enquanto fumava o meu charuto cubano, deslizei até a escrivaninha e peguei o texto. Sentei naquela velha poltrona que um dia fora do meu pai, e depois de por os óculos, estudei o texto por um minuto. Olhei para a casa negra, banhada em escuridão, afora a luz cálida sobre mim e o papel, e, quando retornei o olhar, dei inicio a leitura e a recordação:


“Como seria bom se pudéssemos voltar no tempo apenas um pouquinho. Apenas aquele pouquinho para podermos reviver. Seria bom, muito bom! Voltar a sentir as mesmas sensações, as mesmas histórias e os mesmos risos. Sentir, de fato, o amor e os sentimentos que foram vividos e colaborados. Mas as coisas nunca voltam. O tempo não volta. As horas não voltam. Os segredos e os momentos divididos não voltam. Que pena! O passado fica apenas na memória. Para sempre, para todo o sempre.

Porém as coisas permanecem. Tudo. Tudo o que foi dividido. Os olhares, as trocas de afeto, os abraços, as lagrimas que queimavam os rostos, os fortes sorrisos que faziam arder a barriga, enfim, tudo o que nos marcou, o que nos eternizou. Ah, a saudade!

Os amigos permanecem, seus semblantes, cada gesto, cada brilho trazido nos olhos, cada minucioso ar de simplicidade. Eles permanecem para sempre! A maneira de ser de cada um: suas qualidades, seus defeitos, todas as suas manias e confusões. Isso tudo vai ficar eternizado na memória. Isso é vida, isso é gloria. É acima de tudo presente de Deus.

Ah, essa saudade! Como eu queria poder dar um último abraço naquele amigo que eu jamais voltarei a ver, naquele amigo que eu jamais voltarei a ouvir. Como eu queria reviver aquele momento, aquele sentimento. Mas ele não volta, e eu tenho que estar ciente disso. Apenas a minha memória é capaz de guardar tantas coisas boas e eternas.

Um dia, quando eu estiver velha e talvez com um andar debilitado e deficiente, ainda vou lembrar. Talvez eu esteja sentada em algum balanço ou numa poltrona surrada, talvez eu esteja na cama, sofrendo para poder descer, mas ainda assim lembrarei daqueles dias, daqueles momentos inesquecíveis. Meus filhos saberão de tudo isso, talvez até se emocionarão, mas irão gostar de saber, e ai eu me sentirei orgulhosa por ter vivido isso, por ter passado anos carregando toda essa saudade, e poder levar comigo essas coisas e lembranças, para o eterno, até o fim.”


Lentamente enxuguei as lágrimas que riscavam meu rosto calejado pelos anos, e por um segundo fiquei quieto, apenas contemplando a saudade que me doía. Minutos depois, guardei o glorioso manuscrito e retornei para a minha poltrona. Ah Isabella, que saudade de você! Lentamente fui fechando os olhos — claro que eu posso morrer, o que me resta nessa vida sem ela? — e sentindo a brisa da noite vir me beijar, como se fosse o beijo eterno da minha amada.




quarta-feira, 17 de março de 2010

O POÇO DE SANGUE


Lembro eu que, naquela noite fria ouvi uma voz me gritando — isso que cá vou contar de fato é real, para mim pelo menos foi, mas para você pode não ser e peço que não tente querer acreditar que seja. Pois bem, a voz vinha de fora, mas até a meia-noite foram só dois chamados.

Como eu ainda era — como meus pais diziam — uma criança inocente, fui o primeiro a ir para a cama. Antes de subir para o meu aposento, deixei meu pai sentado no sofá, ouvindo uma música clássica que tocava num radinho de pilha e fumando um charuto amassado sentado em sua poltrona, e minha mãe, recostada em um sofá, lendo um dos seus romances.

— Boa noite, vou indo dormir — disse aos meus pais.

Subi e deitei, rezando para agradecer pelo dia que eu tinha vivido e pedir pelo dia que amanhã eu viveria. Porém, o sono não me veio, e os poucos a voz de alguém, que não discerni se era uma figura masculina ou feminina me gritando, me vinha à mente e aos ouvidos.

Lembro da nossa casa, da nossa fazenda e, daquela maldita noite. Fazia muito frio, e ao longe o vento assoviava uma canção gótica de ternura e temor. As árvores, que dançavam envolta da casa, eram lambidas pela névoa que tomava conta dos campos, bosques, do estábulo, da casa, e, é claro, do poço negro que descansava ao longe, no fundo da propriedade, onde dava-se para ver da janela do meu quarto.

Mas, antes que o medo me venha logo, aqui enquanto escrevo este relato, quero contar que os chamados continuavam, e não agüentando àquela sensação e temendo algo estranho, decidi levantar. Coloquei um casaco e desci as escadas. Uma vez lá embaixo, na porta de entrada, observei o clima sinistro que lá fora se desenhava. Eu tinha 14 à época e vendo através de uma fresta entre as cortinas da porta, senti medo em abri-la e sair. Porem, ainda ouvindo a voz me chamar e sentindo a têmpora me gritar de tensão, abri a porta e senti a nevoa vir até mim e acariciar a minha silhueta.

Olhei ao meu redor. Tudo negro. Tudo escuro exceto por uma luz cor de âmbar provinda de uma lâmpada que pendia no canto da telha do estábulo. Pensei em ir até lá, mas quando ouvi a voz vindo da direção do poço, mudei o rumo do meu caminho — Meu Deus! Me arrepio até agora ao lembrar! Demorei alguns instantes para chegar até o poço. Lá o vento berrava e a nevoa dançava por entre as árvores que dançavam fantasmagoricamente.

— Lincon! — a voz continuava me chamando.

Ela vinha das entranhas do poço. Rapidamente comecei a tirar o tanto de madeira que o mantinha coberto e, assim que o fiz, senti um forte cheiro inundar minhas narinas. O que seria? Pensei. Resolvi puxar um balde cheio lá de dentro. Quando o subi, me espantei ao ver, sentir e comprovar que ele, ao invés de estar cheio de água, como haveria de ser, estar cheio de sangue. Sangue. Larguei o balde rapidamente e peguei uma enorme vara que sempre ficava ao lado do poço e mergulhei-a em seu interior. Revolvi o que me pareceram dois corpos. Corpos humanos. Olhei para dentro do poço e ali, naquele momento, senti uma forte dor em mim quando visualizei duas faces me fitando da escuridão daquele lugar em trevas. Quis gritar, quis correr, mas ao ver meu pai e minha mãe mortos dentro do poço, boiando em seus próprios sangues, quis morrer. Mas, acreditem, desmaiei com um golpe alheio às minhas costas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O ÚLTIMO SUSPIRO DE ADEUS


Os momentos últimos da angustiante luta pela sobrevivência fizeram de Murillo um homem nobre. Seus gestos de bondade, seu ar sempre afável e a sua sempre disponível vontade de promover aquela paz que em vida nunca teve, tudo, exatamente tudo em seus últimos suspiros, foi algo digno de uma benção divina.

— Chamaremos um padre — proferiu Glória, sua mulher, que com o acúmulo dos anos tornou-se uma pessoa de fibra, e que agora já tem na cabeça a idéia de que a morte logo virá buscar o seu marido. — Precisamos fazer a Extrema-Unção — proferiu.

Descansando sobre o leito fétido e sem vida de um hospital, Murillo, com seus quase 75 anos de idade sabia que a morte estava quase batendo a porta daquele quarto, que a sua carruagem já estava chegando e que logo abanaria para esse mundo. Seu aspecto cadavérico provocava lágrimas aos que lhe visitavam. Seus familiares, entorpecidos de tristezas e de tanto proferir choros às escondidas, já nem as derramavam mais.

— Como está se sentindo sr. Murillo? — Perguntavam.

— Estou bem. A cada dia que passa tenho a certeza de que Deus está tirando com a minha cara ao me deixar aqui, agonizando — reclamava com uma dose de sarcasmo.

Na noite em que ia ser entregue as preces do padre, Murillo solicitou apenas uma coisa, uma única coisa. Convocou Glória e lhe falou secretamente.

— Meu amor, sabe que sempre lhe amei, e que agora, nesta hora maldita, minha vida está para ser encerrada. Sabe que...

— Murillo, não fale isso — interrompeu ela.

Ele sorriu.

— Entenda Glória, a vida tem um começo e um fim. E o fim da minha chegou. Rogo para que Deus a proteja e a guie. Cuide de nossos filhos e netos, nessa minha ausência esperada. Os anos me foram gratos por tê-la tido ao meu lado e só tenho a agradecer por tudo o que me destinastes. Saiba que sempre amarei você.

Em prantos, Glória começava a secar as lágrimas que aos poucos iam riscando a sua face carregada de rugas. Curvou-se com dificuldade e abraçou-o. Ambos choraram, e quando Murillo fez menção em falar, ela levantou-se novamente.

— Glória, quero lhe pedir uma única coisa.

— Peça o que você quiser — disse ela com a voz rouca.

— Me deixe morrer. Me deixe morrer sozinho! Hoje à noite, antes da Extrema-Unção, quero me despedir de você e das crianças, depois disso, quero passar à noite sozinho e esperar por ela. Sei que essa noite a morte virá me buscar...

Glória não disse uma palavra, mas por fim, acatou ao ultimo pedido do marido.

Murillo despediu-se de seus entes, e após a Extrema-Unção, disse adeus ao mundo. Entrava madrugada adentro quando o padre fechou a porta do quarto, lacrando-o como se fosse uma tumba. A morte estava quase chegando, e aquela escuridão fez Murillo ligeiramente relembrar dos seus anos em poucos minutos. E quando a morte entrou, seus olhos fecharam, a voz se calou e a respiração cessou. Sua alma tinha ido embora, e ela, tão bela quanto o negror de uma maldição, carregou mais um de seus adoráveis presentes.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

UM BEIJO DE MORTE



Escuro estava o quarto de Claire, uma mulher de gestos leves e ar doce. Entorno dos seus louváveis 26 anos de uma vida sofrida e banhada em esperança, ela, uma sereia de traços fortes e olhar distante, com lábios grossos e face retangular, não sabe outra coisa fazer senão nutrir a esperança de um dia encontrar um amor de fato.

Mas agora estava deitada sobre seu leito morno, olhando para o teto branco, sem pensar em nada, em nada e em ninguém em especial. Imaginava viver uma vida de sonhos e de encontros furtivos com pessoas desenganadas, mas ela sabia que isso era por demais impossível. Os olhos belos de Claire lentamente estavam se fechando e ela sentia que o sono viria fazê-la dormir, coisa que não demorou a acontecer. Seus suspiros e a contração dos pulmões eram belos, a respiração deveras ofegante, não menos majestosa. O vento frio entrava pela janela que ela, sem se dar conta, não lembrou de fechar. Era o andar de cima, o andar do medo. Cobriu-se com o cobertor e em seguida virou de lado para acomodar-se melhor na cama. Em seus sonhos Claire via um homem lindo — o ser mais magnífico que a presença feminina poderia alcançar. Ele era dotado de uma masculinidade impar e com uma sutileza de tirar o fôlego de todas as mulheres.

Enquanto ela sonhava, a veneziana da janela balançava com o vento que vinha beliscar a madeira da casa e lustrar as árvores e as outras matérias encravadas nas ruas e nas avenidas escuras e sombrias da madrugada. Porém Claire, entretida com o seu sonho, não percebeu a figura subindo pela janela e nem entrando no quarto negro onde jaz ela se deleitava num sono tranqüilo e afável. Ele entrou com seu manto negro e em pé a observou. A figura era estranha, por demais assustadora, mas, não por menos atraente. Sorriu ao vê-la ali tão bela. Pensou em atacá-la, mas a beleza rara e consistente de Claire o fez mudar de idéia ligeiramente. Ele agachou-se e passou os dedos negros e raquíticos nos cabelos dela e em seguida beijou-a suavemente. Um beijo tão eterno quanto o sonho que ele jamais acabaria de sonhar. Seus lábios mornos se tocaram com delicadeza, mas aquela figura queria mais, e assim o fez. Um beijo ardente, um beijo de morte, o beijo e o amor louco que ela sempre desejou. A figura estranha limpou a boca cheia de sangue e foi se afastando da cama. Foi até a janela e saiu para as trevas. Ali, Claire ficou imóvel, com uma mão pendendo da cama e encostando-se ao chão. Ela ganhou o que sempre quis: um beijo ardente, um beijo de amor. Porém, o que menos imaginou: um beijo de morte.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

TEM ALGUÉM ALI



— Mãe, tem alguém ali — disse Elisabeth.

— Ali aonde menina?

— No meu armário.

— Minha filha, já disse a você que não tem nada no seu armário. É coisa da sua cabeça. Agora vá dormir, por que amanhã você tem que acordar cedo para ir pra escola.

A menina, tomada por um medo do tamanho de sua inocência, ficou parada na porta e não saiu dali. Alguns segundos depois, seu pai lhe repreendeu.

— Elisabeth, por favor, vá para cama.

— Mas eu estou com medo pai — disse com a voz rouca, um pouco baixa, mas suave, como mandavam os seus sete anos de idade. Vestia uma camisola branca que lhe cobria os joelhos e estava descalça.

Sem saber como proceder, a pobre menina voltou para o quarto acompanhada de um temor jamais visto. Assim que passou pela porta, Elisabeth rapidamente escapuliu para baixo do cobertor e se cobriu. Até tentou dormir. Até tentou cochilar. Mas aquele barulho ainda socava em sua cabeça. Vinha do armário, isso ela sabia, e minutos mais tarde seus olhinhos abriram ao ouvir um dos tantos ruídos estranhos que latejavam em seu coração. Ao voltar os olhos para o armário, ela viu as duas maiores portas abrirem, e segundos depois, emergindo das trevas da escuridão, avistou uma mulher alta, munida de um vestido branco, com grossas manchas de sangue se proliferando rapidamente pelo seu corpo torto e demoníaco, e com os cabelos para frente, cobrindo-lhe a face, vindo em sua direção. Elisabeth estava atônita com aquela visão e não conseguia nem gritar de tanto medo ao ver àquela mulher. Aquela figura caminhava sem pressa, até que repentinamente ergueu os olhos vazios como um poço negro e sorriu um riso que arrepiou os cabelos da menina.

— Paul — chamou Margareth, mãe de Elisabeth. — Você ouviu isso?

— Isso o que? Vá dormir, temos que acordar cedo amanhã — ele repeliu.

— Veio do quarto de Elisabeth.

Ele abriu os olhos e ouviu aquele mesmo silêncio que sempre pairava pela casa durante as longas madrugadas. Mas dessa vez, ousou dar atenção a sua mulher. Ambos levantaram e foram até o quarto da menina. Encontraram a porta aberta, e assim que entraram, perceberam que Elisabeth não estava na cama. De anormal visualizaram apenas as portas do armário abertas. Paul foi até lá, e imóvel em frente à escuridão, ficou mudo.

— Santo Deus...

— O que foi Paul? O que houve?

Ele apontou com o dedo. Elisabeth jazia no fundo do armário em pedaços. Mutilada. Estava sem carne nem órgãos. Do seu lado estavam os braços e as pernas, jogados como se fossem pequenos gravetos.

Paul e Margareth não sabiam o que fazer, e de repente Margareth virou para trás e avistou aquela mulher sobre a cama da filha. Marido e mulher se entreolharam. A figura ergueu os olhos e sorriu, e inevitavelmente tudo ficou negro diante dos olhos daquele casal.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A SOMBRA DA MEIA-NOITE


À mercê da luz cálida da meia-noite que se acotovela por entre a fresta mínima da janela do andar de cima do castelo mais sombrio a tantas milhas, onde os nervos se aquecem no frio repentino da estação gélida, crua e nua que desfalece e deixa desprovida de folhas e brotos, fazendo permanecer apenas os gravetos finos e enregelados da noite gótica que atravessa os ventos e as névoas fantasmagóricas que reluzem à simples formas de escuridão, eu, solicito as sombras, permaneço na minha insônia sem futuro, tentando construir pensamentos e alinhá-los nitidamente como numa estrada de poeira solta num dia de clima quente como inferno.

A sala onde jaz meu corpo no ócio se reflete ao meu estado de espírito — descansa numa paz sombria, onde a luz cálida de um candelabro rasga a escuridão para desmascarar minha face. Sobre minha alma perdura um teto antigo, onde já escutei em vezes muitas passos amaldiçoados de seres provindos de outros planos de existência. No meu lado esquerdo tem a sagrada lareira de pedra, fortificada com os séculos. O fogo que lá arde preguiçosamente já ardeu com mais astúcia. Os retratos dos meus anos postos sobre a cômoda ao lado me lembram muitas primaveras, até mesmo as moças que um dia eu na cama consolei. Ainda beliscando os arredores da sala com os olhos, chego próximo a uma poltrona. A bela poltrona que um dia ganhei no júbilo de minha maturidade — Ei! Espere! Tive que olhar para fora, pois percebo que o mau se aproxima. Nuvens negras me dão sinal de uma noite de trevas, e pelo vidro da janela observo o vento inclinar árvores, rasgar plantações e levantar objetos em redemoinhos. A chuva chegou, claro que acompanhada de fortes e bravos clarões, raios corajosos que riscam o céu sobre o meu castelo. Mas, voltando cá a ler a sala onde me encontro, percebo que um mundo de solidão me engole e que um seleto número de clarões penetra na sala como se fossem intrusos sinistros.

— Seja bem-vinda! Oh noite que me faz amar! — digo antes do desassossego.

Então eu começo a andar, mas quando ouço os trovões e o respigar das gotas da chuva no vidro da janela, tento me acalmar de uma tensão que tenta me sugar. Passo a mão sobre a barba, aliso os cabelos grisalhos, e enfim, olho em direção a porta. A figura está lá, estampada como um troféu. Parece um cavaleiro das trevas, um senhor das almas, um corvo, um gato, um demônio. Agora ele vem em minha direção e eu, cônscio de que minha respiração começa a aumentar, percebo minhas pernas fora do compasso, mas permaneço imóvel. Sua mão é imensa, talvez duas da minha, mas antes de qualquer coisa, seus dedos roçam minha testa. Caricia, singeleza, tudo num só momento. Ele parece ser de outro mundo, não sei. Quem sabe seja a morte, quem sabe seja a solidão ou alguém vindo das sombras.

A minha insônia já se foi, e agora meus olhos se arregalam, eufóricos, demoníacos. Com cuidado, vou deitando lentamente, e vendo o sorriso amargo e sarcástico brotar da boca daquela figura a minha frente. A tumba do inferno me aguarda e os sete braços de serpente virão me abraçar a qualquer momento, como um doce visitante num dia de festa. Mas de fato é um visitante. Um visitante vindo das sombras, macabro, enervado em horror. Um visitante à meia-noite.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

MISTERIOSA ATRAÇÃO


Sempre me perguntei o que realmente se escondia por trás do olhar felino de Damiana. Um olhar ousado, gentil, atraente e ao mesmo tempo perturbador. A maneira como ela me fitava, seu sorriso, seus gestos, tudo nela me fazia acreditar que ela era a perfeição em pessoa. A primeira conversa que traçamos foi numa noite fria e mergulhada em névoa. Como em todas as ruas da cidade, eu vinha caminhando atento, quieto e apenas sentindo o coração gritar na região das têmporas, quando senti um arrepio me acariciar a alma, e um medo avulso me invadir. Olhei ligeiramente para trás e vi apenas a rua deserta, cheia de sombras e penumbra. Mas quando passei por um beco escuro, senti que uma figura se projetava as minhas costas. Espantei-me, mas por sorte, era ela.

Aproveitando-me desse momento, convidei-a para sair, e no outro dia nos encontramos num café que descansava no térreo de um edifício sombrio e antigo. O estabelecimento era pequeno e com pobres detalhes de lucidez. Enquanto lia o cardápio, não percebi Damiana entrar e só notei sua presença quando dirigiu a palavra a mim.

― Veio cedo...

― Não costumo me atrasar ― sorri e beijei-a. ― Você está linda.

Nessa noite conversamos e bebemos aos montes, até que em certo momento, como num impulso, ou valendo-se de minha artimanha masculina, convidei-a para brindar a noite e ir até o meu apartamento. Ela aceitou, e quando chegamos, Damiana admirou-se ao contemplar os contornos dos móveis e dos cômodos.

— Você tem bom gosto — disse ela, passeando os olhos para todos os lados.

Não agüentamos por muito tempo. A despi com paciência, e assim que ela obedeceu ao mesmo procedimento, seu corpo nu roçou meus lábios e, antes de cairmos num sono profundo, entregamos-nos um ao outro como a doçura de um hálito de prazer.

Ao acordar, percebi que o alvorecer se apresentava quando uma tira de luz do sol veio acariciar minha face. Abri os olhos e tateei a cama ao meu lado. Damiana não estava lá. Levantei ligeiro e não notei sua presença dentro do apartamento. De roupão, andei pelo corredor e, sobre uma cômoda, observei um pedaço de papel em cima de uma folha de jornal velho. Tomei o papel em mãos e li aquelas malditas palavras:

“Espero que tenha gostado desta noite assim como eu, e desejo que não permita que seu coração se apegue assim, pois eu não pertenço a você, nem a ninguém.”

Sem entender, peguei a folha de jornal e li uma reportagem que me fisgou, corroendo-me de susto. Não acreditei. A matéria dizia que uma jovem havia sido vitima fatal de um acidente de carro, e que o fato, como explicitava a data do jornal, era de quase dez anos atrás. Atônito, quase cai de costas quando vi o retrato de Damiana ali exposto. Ela estava morta há quase uma década! Mas então quem era aquela garota? Com quem eu realmente eu havia estado na noite anterior? Larguei rapidamente aquela folha amarelecida, e após me aprumar, desci as escadas em busca de fôlego e de respostas.