quarta-feira, 31 de março de 2010

O MANUSCRITO DA SAUDADE


Ainda hoje sinto saudade de Isabella — a minha eterna doce amada. Sempre contemplei seu riso, seus olhos e seus cabelos quase doirados. Quando me recordo dos nossos dias vejo que sempre tive o que desejei, e que, de fato, fomos feitos um para o outro. Isabella era escritora, e existe um texto feito por ela que não consigo ler sem chorar. É Um texto sobre saudade, coisa que muito me lembra ela.

Era noite, e a sua lembrança estava me golpeando. Enquanto fumava o meu charuto cubano, deslizei até a escrivaninha e peguei o texto. Sentei naquela velha poltrona que um dia fora do meu pai, e depois de por os óculos, estudei o texto por um minuto. Olhei para a casa negra, banhada em escuridão, afora a luz cálida sobre mim e o papel, e, quando retornei o olhar, dei inicio a leitura e a recordação:


“Como seria bom se pudéssemos voltar no tempo apenas um pouquinho. Apenas aquele pouquinho para podermos reviver. Seria bom, muito bom! Voltar a sentir as mesmas sensações, as mesmas histórias e os mesmos risos. Sentir, de fato, o amor e os sentimentos que foram vividos e colaborados. Mas as coisas nunca voltam. O tempo não volta. As horas não voltam. Os segredos e os momentos divididos não voltam. Que pena! O passado fica apenas na memória. Para sempre, para todo o sempre.

Porém as coisas permanecem. Tudo. Tudo o que foi dividido. Os olhares, as trocas de afeto, os abraços, as lagrimas que queimavam os rostos, os fortes sorrisos que faziam arder a barriga, enfim, tudo o que nos marcou, o que nos eternizou. Ah, a saudade!

Os amigos permanecem, seus semblantes, cada gesto, cada brilho trazido nos olhos, cada minucioso ar de simplicidade. Eles permanecem para sempre! A maneira de ser de cada um: suas qualidades, seus defeitos, todas as suas manias e confusões. Isso tudo vai ficar eternizado na memória. Isso é vida, isso é gloria. É acima de tudo presente de Deus.

Ah, essa saudade! Como eu queria poder dar um último abraço naquele amigo que eu jamais voltarei a ver, naquele amigo que eu jamais voltarei a ouvir. Como eu queria reviver aquele momento, aquele sentimento. Mas ele não volta, e eu tenho que estar ciente disso. Apenas a minha memória é capaz de guardar tantas coisas boas e eternas.

Um dia, quando eu estiver velha e talvez com um andar debilitado e deficiente, ainda vou lembrar. Talvez eu esteja sentada em algum balanço ou numa poltrona surrada, talvez eu esteja na cama, sofrendo para poder descer, mas ainda assim lembrarei daqueles dias, daqueles momentos inesquecíveis. Meus filhos saberão de tudo isso, talvez até se emocionarão, mas irão gostar de saber, e ai eu me sentirei orgulhosa por ter vivido isso, por ter passado anos carregando toda essa saudade, e poder levar comigo essas coisas e lembranças, para o eterno, até o fim.”


Lentamente enxuguei as lágrimas que riscavam meu rosto calejado pelos anos, e por um segundo fiquei quieto, apenas contemplando a saudade que me doía. Minutos depois, guardei o glorioso manuscrito e retornei para a minha poltrona. Ah Isabella, que saudade de você! Lentamente fui fechando os olhos — claro que eu posso morrer, o que me resta nessa vida sem ela? — e sentindo a brisa da noite vir me beijar, como se fosse o beijo eterno da minha amada.




quarta-feira, 17 de março de 2010

O POÇO DE SANGUE


Lembro eu que, naquela noite fria ouvi uma voz me gritando — isso que cá vou contar de fato é real, para mim pelo menos foi, mas para você pode não ser e peço que não tente querer acreditar que seja. Pois bem, a voz vinha de fora, mas até a meia-noite foram só dois chamados.

Como eu ainda era — como meus pais diziam — uma criança inocente, fui o primeiro a ir para a cama. Antes de subir para o meu aposento, deixei meu pai sentado no sofá, ouvindo uma música clássica que tocava num radinho de pilha e fumando um charuto amassado sentado em sua poltrona, e minha mãe, recostada em um sofá, lendo um dos seus romances.

— Boa noite, vou indo dormir — disse aos meus pais.

Subi e deitei, rezando para agradecer pelo dia que eu tinha vivido e pedir pelo dia que amanhã eu viveria. Porém, o sono não me veio, e os poucos a voz de alguém, que não discerni se era uma figura masculina ou feminina me gritando, me vinha à mente e aos ouvidos.

Lembro da nossa casa, da nossa fazenda e, daquela maldita noite. Fazia muito frio, e ao longe o vento assoviava uma canção gótica de ternura e temor. As árvores, que dançavam envolta da casa, eram lambidas pela névoa que tomava conta dos campos, bosques, do estábulo, da casa, e, é claro, do poço negro que descansava ao longe, no fundo da propriedade, onde dava-se para ver da janela do meu quarto.

Mas, antes que o medo me venha logo, aqui enquanto escrevo este relato, quero contar que os chamados continuavam, e não agüentando àquela sensação e temendo algo estranho, decidi levantar. Coloquei um casaco e desci as escadas. Uma vez lá embaixo, na porta de entrada, observei o clima sinistro que lá fora se desenhava. Eu tinha 14 à época e vendo através de uma fresta entre as cortinas da porta, senti medo em abri-la e sair. Porem, ainda ouvindo a voz me chamar e sentindo a têmpora me gritar de tensão, abri a porta e senti a nevoa vir até mim e acariciar a minha silhueta.

Olhei ao meu redor. Tudo negro. Tudo escuro exceto por uma luz cor de âmbar provinda de uma lâmpada que pendia no canto da telha do estábulo. Pensei em ir até lá, mas quando ouvi a voz vindo da direção do poço, mudei o rumo do meu caminho — Meu Deus! Me arrepio até agora ao lembrar! Demorei alguns instantes para chegar até o poço. Lá o vento berrava e a nevoa dançava por entre as árvores que dançavam fantasmagoricamente.

— Lincon! — a voz continuava me chamando.

Ela vinha das entranhas do poço. Rapidamente comecei a tirar o tanto de madeira que o mantinha coberto e, assim que o fiz, senti um forte cheiro inundar minhas narinas. O que seria? Pensei. Resolvi puxar um balde cheio lá de dentro. Quando o subi, me espantei ao ver, sentir e comprovar que ele, ao invés de estar cheio de água, como haveria de ser, estar cheio de sangue. Sangue. Larguei o balde rapidamente e peguei uma enorme vara que sempre ficava ao lado do poço e mergulhei-a em seu interior. Revolvi o que me pareceram dois corpos. Corpos humanos. Olhei para dentro do poço e ali, naquele momento, senti uma forte dor em mim quando visualizei duas faces me fitando da escuridão daquele lugar em trevas. Quis gritar, quis correr, mas ao ver meu pai e minha mãe mortos dentro do poço, boiando em seus próprios sangues, quis morrer. Mas, acreditem, desmaiei com um golpe alheio às minhas costas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O ÚLTIMO SUSPIRO DE ADEUS


Os momentos últimos da angustiante luta pela sobrevivência fizeram de Murillo um homem nobre. Seus gestos de bondade, seu ar sempre afável e a sua sempre disponível vontade de promover aquela paz que em vida nunca teve, tudo, exatamente tudo em seus últimos suspiros, foi algo digno de uma benção divina.

— Chamaremos um padre — proferiu Glória, sua mulher, que com o acúmulo dos anos tornou-se uma pessoa de fibra, e que agora já tem na cabeça a idéia de que a morte logo virá buscar o seu marido. — Precisamos fazer a Extrema-Unção — proferiu.

Descansando sobre o leito fétido e sem vida de um hospital, Murillo, com seus quase 75 anos de idade sabia que a morte estava quase batendo a porta daquele quarto, que a sua carruagem já estava chegando e que logo abanaria para esse mundo. Seu aspecto cadavérico provocava lágrimas aos que lhe visitavam. Seus familiares, entorpecidos de tristezas e de tanto proferir choros às escondidas, já nem as derramavam mais.

— Como está se sentindo sr. Murillo? — Perguntavam.

— Estou bem. A cada dia que passa tenho a certeza de que Deus está tirando com a minha cara ao me deixar aqui, agonizando — reclamava com uma dose de sarcasmo.

Na noite em que ia ser entregue as preces do padre, Murillo solicitou apenas uma coisa, uma única coisa. Convocou Glória e lhe falou secretamente.

— Meu amor, sabe que sempre lhe amei, e que agora, nesta hora maldita, minha vida está para ser encerrada. Sabe que...

— Murillo, não fale isso — interrompeu ela.

Ele sorriu.

— Entenda Glória, a vida tem um começo e um fim. E o fim da minha chegou. Rogo para que Deus a proteja e a guie. Cuide de nossos filhos e netos, nessa minha ausência esperada. Os anos me foram gratos por tê-la tido ao meu lado e só tenho a agradecer por tudo o que me destinastes. Saiba que sempre amarei você.

Em prantos, Glória começava a secar as lágrimas que aos poucos iam riscando a sua face carregada de rugas. Curvou-se com dificuldade e abraçou-o. Ambos choraram, e quando Murillo fez menção em falar, ela levantou-se novamente.

— Glória, quero lhe pedir uma única coisa.

— Peça o que você quiser — disse ela com a voz rouca.

— Me deixe morrer. Me deixe morrer sozinho! Hoje à noite, antes da Extrema-Unção, quero me despedir de você e das crianças, depois disso, quero passar à noite sozinho e esperar por ela. Sei que essa noite a morte virá me buscar...

Glória não disse uma palavra, mas por fim, acatou ao ultimo pedido do marido.

Murillo despediu-se de seus entes, e após a Extrema-Unção, disse adeus ao mundo. Entrava madrugada adentro quando o padre fechou a porta do quarto, lacrando-o como se fosse uma tumba. A morte estava quase chegando, e aquela escuridão fez Murillo ligeiramente relembrar dos seus anos em poucos minutos. E quando a morte entrou, seus olhos fecharam, a voz se calou e a respiração cessou. Sua alma tinha ido embora, e ela, tão bela quanto o negror de uma maldição, carregou mais um de seus adoráveis presentes.